Um tesouro arqueológico, de Minas Gerais para a América
Quem
reside na Capital mineira nem imagina que, muito próximo dali, do solo de uma
caverna deslumbrante, ecoa um passado distante de milhares de anos que lança
novas luzes sobre a vida dos ancestrais que habitaram a nossa terra.
Estou
me referindo à Lapa do Santo, uma caverna incrustada em um maciço calcário, nos
terrenos da Fazenda Cauaia, Município de Matosinhos, a apenas 60 quilômetros de
Belo Horizonte.
A
Lapa do Santo está inserida na Apa Carste de Lagoa Santa (área de proteção
ambiental do relevo cárstico) que aflora na região de Lagoa Santa e adjacências
e que abriga inúmeras cavernas e sítios arqueológicos.
Lapa do Santo: visão do rochedo calcário e da enorme boca da
caverna encoberta pela mata
Para
entender a importância desse sítio arqueológico, basta dizer que ali foi
encontrado um grafismo rupestre datado, até agora, como o mais antigo das
Américas. Trata-se de um petróglifo (uma gravação na rocha) de uma figura
antropomorfa com o falo ereto, batizada de “taradinho” com datação superior a 9.500 anos atrás.
Além
dessa importante descoberta, a Lapa do Santo revelou outras, tais como as práticas
mortuárias bizarras, verdadeiras obras de arte, até então pouco conhecidas,
realizadas pelos homens pré-históricos da denominada “raça de lagoa santa”.
Algumas ornamentações naturais na Lapa do Santo: À esquerda, a face de um "guardião” e à direita um enorme estalactite na entrada
do abrigo.
A
caverna, que por si só já é muito bela, parecendo um anfiteatro natural, é rica
em vestígios arqueológicos de toda ordem: inúmeros sepultamentos, cinzas de
fogueiras, sobras de refeições de frutas, caça miúda, instrumentos líticos
lascados e polidos, pinturas rupestres, painéis de gravações de petroglifos, marcas
de afiadores de machados de pedra, etc. Tudo indicando que o abrigo foi usado
como moradia e cemitério por um grupo de caçadores-coletores que viviam da coleta
de frutos e tubérculos e da caça de animais de pequeno porte.
À esquerda: Salão secundário da
Lapa do Santo, onde são encontradas as pinturas rupestres (a direita)
Afiadores, incisões na rocha
resultantes da afiação do gume de machados de pedra
As
datações conseguidas na Lapa do Santo indicam que o abrigo foi ocupado em três
fases distintas (holoceno tardio, médio e inicial) com datações médias de 800,
4.000 e 9.500 anos antes do presente, para cada fase respectivamente.
Foram
realizadas aproximadamente 57 datações de carvão, 10 de TL e 9 de esqueletos,
utilizando os métodos de datação de carbono-14 e termo luminescência.
(estima-se um gasto superior a 50 mil dólares só com as datações).
As
datações obtidas no abrigo estão em sintonia com as outras
datações apuradas nos demais abrigos da região de Lagoa Santa que mostram
claramente que a ocupação destas cavernas se deu de forma irregular e não
contínua. Há aproximadamente 4.000 anos atrás, após o desaparecimento da raça de
lagoa santa (povo de Luzia) a região de abrigos e cavernas do carste de Lagoa
Santa parece ter sido abandonada talvez pela escassez de água e caça no local.
Quando alguns abrigos voltaram a ser ocupados novamente no último milênio a
população indígena já era diferente, apresentando características morfológicas
e hábitos bastante diferentes do antigo povo de Luzia.
Principal área de escavação: 29
esqueletos e datações até 9.000 anos
As
principais escavações na Lapa do Santo ocorreram no período de 2002 a 2009, dentro do
“projeto origens” sob a supervisão do arqueólogo e bioantropólogo Walter Alves
Neves, projeto coordenado pelo Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH)
do Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP)
A
pesquisa recebeu apoio financeiro da FAPESP (Fundação de amparo à pesquisa do
Estado de São Paulo.
Agora
o arqueólogo André Strauss, do Instituo Max Planck de Antropologia Evolutiva,
na Alemanha, dá continuidade aos trabalhos de pesquisa e escavação analisando
as estranhas práticas mortuárias que ocorreram no abrigo.
Detalhes da escavação: à esquerda, dentro do abrigo: a retirada de um esqueleto. À direita, fora do abrigo, sedimentos sendo peneirados a procura de pequenos vestígios.
Mesa de trabalho na escavação: Tecnologia à disposição do passado. O uso do computador é essencial, pois é através de um software que todas as peças encontradas no sítio são plotadas. Os vestígios são registrados em planilhas, onde é anotado o tipo do objeto, sua posição, nível, coordenadas, etc.
Taradinho:
O
grafismo rupestre batizado de “taradinho” foi encontrado já no apagar das
luzes, no final da escavação de 2009,
a 4
metros abaixo da superfície.
A
figura representa um antropoformo, que parece estar de cócoras, com os braços
abertos, com três dígitos em cada mão e o rosto em forma de “c”. Possui cerca
de 30 cm
de altura e 20 cm
de largura.
Pelo
fato de ser um petróglifo, ou seja, uma gravação feita na rocha em baixo
relevo, a princípio, seria impossível obter a datação da figura. Mas como a
gravação estava inscrita em uma rocha soterrada a 4 metros de profundidade,
foi possível datar o sedimento que cobria a pedra. Restos de uma fogueira
pré-histórica localizada a poucos centímetros acima da figura, no sedimento que
cobria a gravação, forneceram carvão suficiente para a obtenção de datações
acima de 9.000 anos. Se a figura estava abaixo desse nível de sedimento datado
significa que ela é ainda bem mais antiga. A análise da datação e da
estratigrafia local sugere datações de 9.000 a 11.000 anos de idade, fazendo do
“taradinho” o mais antigo exemplo de grafismo rupestre encontrado nas Américas.
Essa
descoberta é de suma importância, pois além de se conseguir uma datação precisa
de um grafismo rupestre (o que é extremamente difícil), a descoberta põe em
cheque a tese americana do chamado modelo Clovis que, segunda a qual, a única
via migratória do ser humano para o continente americano teria ocorrido pelo
estreito de Bering há cerca de 10
a 12 mil anos atrás. Com a datação do Taradinho,
percebe-se que dez séculos ou um pouco mais seria um tempo muito curto para as
populações humanas migrarem do estreito de Bering no norte da América para a
região de Lagoa Santa se adaptando aos ecossistemas existentes pelo caminho. A
morfologia do homem da raça de Lagoa Santa (conhecida por Lund como Homo
Sapiens lagoanus) e agora também batizada como o “povo de Luzia” indica
características negróides, diferentes das características mongolóides da
população que fez a travessia do estreito de Bering no modelo Clovis. Quando se
compara a morfologia craniana do povo de Luzia com os demais tipos, percebe-se
que o povo de Luzia se parece muito mais com australianos e africanos do que
com as populações mongóis da Sibéria ou mesmo com as populações indígenas
atuais. Tais fatos podem sugerir que
existiram travessias anteriores a 12 mil anos sem ser aquela citada pelo modelo
Clovis ou mesmo outras rotas migratórias ainda não identificadas.
Ao
final das escavações nessa quadra, a gravura foi novamente soterrada com a
devolução dos sedimentos retirados. Assim, o “taradinho” voltou a ficar
escondido e preservado a 4
metros abaixo da superfície. Tudo indica que não se
trata de uma figura única. É possível que o “Taradinho” faça parte de um painel
maior de gravações que se encontram soterradas em quadras que serão escavadas
no futuro.
No
link abaixo é possível ver um vídeo da quadra e do poço onde a figura foi
encontrada na caverna: http://www.youtube.com/watch?v=9EbXp4CdB6w (cole o endereço da URL)
Petroglifo antropomorfo
“taradinho” - Foto: Acervo LEEH
Na figura é possível observar:
1-
O rosto em forma de “c”, com a boca aberta, 2- as mãos com três dígitos, 3- O
falo ereto e 4- As pernas
Petróglifo de antropomorfo que
faz parte de outro painel de gravações na Lapa do Santo. Observe o mesmo estilo
da figura com três dígitos nas mãos e nos pés.
Práticas mortuárias bizarras:
As escavações que revelaram mais
de 29 esqueletos humanos na Lapa do Santo mostraram práticas rituais bastante
excêntricas. Até bem pouco tem atrás se acreditava que os sepultamentos
pré-históricos da região de lagoa santa eram realizados de forma primária, ou
seja, os corpos eram enterrados diretamente no chão, em posição fetal e de lado
e as sepulturas eram cercadas por blocos de pedra.
Depois das escavações na Gruta de
Boleiras e principalmente agora, com o trabalho realizado na Lapa do Santo,
ficou constatado que os paleoindios, além do sepultamento primário, faziam uso
também do sepultamento secundário, ou seja, depois de enterrar os corpos no
solo, os ossos eram retirados e manipulados, recebendo algum tipo de tratamento
ritual para serem reorganizados e enterrados novamente.
Nos sepultamentos secundários, os
ossos foram intencionalmente reorganizados, seguindo regras específicas e
orientações baseadas em uma lógica na forma como os ossos eram cortados e
juntados novamente. Havia uma simetria bizarra nesses sepultamentos misturados,
geralmente juntando um crânio adulto com ossos de crianças ou vice e versa.
Parece que uma criatividade
mórbida e misteriosa regia os sepultamentos, onde os ossos de diversos mortos
podiam ser reunidos dentro do crânio de outra pessoa. Dentes de um indivíduo
eram arrancados para enfeitar o esqueleto de outro. Uso de tinta vermelha
(ocre) e queima com fogo mudavam a aparência dos restos mortais dos
indivíduos.
Um metacarpo e outros ossos misturados
Nos
diversos sepultamentos encontrados em estratigrafias datadas de mais de 8.000
anos é possível observar várias manipulações e arranjos intencionais dos ossos.
Por exemplo: 1) aplicação de pigmento de cor ocre sobre o crânio, 2) incisões
intencionais nos ossos, 3) remoção intencional das extremidades de fêmures e
úmeros, 4) caixa craniana com vários ossos em seu interior de outros indivíduos
misturados com marcas de corte e queima, 5) mandíbulas com todos os dentes
propositalmente removidos, 6) crânio com a região do alvéolo queimada, 7)
cotovelo com corte na extremidade proximal da diáfise e inserido dentro de um crânio, 8) cortes e marcas de machados nos
ossos em abundância, 9) feixe de ossos longos de adultos presos com a mandíbula
de uma criança. Todos os dentes estavam ausentes da mandíbula e não foram
encontrados nas proximidades. Cada extremidade da mandíbula apresentava um
pequeno orifício circular de cerca de 3 mm de diâmetro, talvez indicando que a
mandíbula serviu como um “anel” para manter o feixe de ossos juntos. 10) No
sepultamento de n: 26 foram encontrados os ossos das mãos amputadas, orientadas
em direções opostas sobre o rosto, com a mão direita colocada sobre o lado
esquerdo do rosto, com os dedos apontando para baixo e mão esquerda colocada
sobre o lado direito do rosto com os dedos apontados para cima.
O
interessante é que a região de Lagoa Santa é escavada sistematicamente desde o
século 19, com centenas de esqueletos descobertos e até então, a idéia que se
tinha era a de que os sepultamentos eram apenas “normais”, com os corpos
intactos enterrados em posição fetal entre blocos de pedra.
Ao
que tudo indica, essa prática mortuária de manipulação, descarne dos ossos após
a morte e sua reorganização não tem ligações com canibalismo e nem mesmo com
sacrifício humano, pois não há sinal de violência (fraturas na cabeça).
Esses
ritos funerários elaborados através da utilização do corpo humano como objeto
sagrado, com sua redução corporal (corte e seleção de alguns ossos específicos)
ou a sua reorganização espacial parecem não serem específicos do abrigo da Lapa
do Santo. Muitos sítios arqueológicos espalhados em Minas e nas Américas já
deram indícios dessas práticas. Existem evidências tais como os ossos dos pés
isolados do corpo, achados no sítio de Santana do Riacho, região da serra do
Cipó em Minas Gerais, ou os ossos tubulares queimados achados em Confins ou o
amputado do vale do Peruaçu, todas essas evidências até então ignoradas.
Certamente, um novo estudo das coleções dos
esqueletos fósseis da região de Lagoa santa, principalmente as coleções de
Harold Walter, do Museu Nacional do Rio de Janeiro e do Museu de Lund em
Copenhague, trará novas luzes sobre a prática mortuária do Povo de Luzia.
muito bom!
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