Gruta
do Ballet
A
celebração da fertilidade através de antigos rituais
Imagine um lugar sagrado... Não vale pensar em
basílicas ou catedrais construídas com todo o luxo dispendioso das sociedades
modernas. Projete em sua mente um templo forjado pela própria natureza há
milhares de anos. Uma caverna, por exemplo. Situada no alto de uma vertente e com
um grande salão à meia-luz. Agora, feche seus olhos e volte no tempo...
Visualize um grupo desnudo de homens e mulheres em uma noite clara de lua cheia
entrando nessa gruta - o útero da grande mãe - para celebrar rituais primitivos
de fertilidade, em torno de enormes fogueiras...
Este é um cenário que poderia muito bem ter ocorrido em
uma noite distante, perdida no tempo, em uma caverna conhecida na atualidade como
Lapa do Chapéu ou Gruta do Ballet, situada no Distrito de Mocambeiro, Município
de Matozinhos/MG, a aproximadamente 40 km ao norte da Capital Mineira.
A gruta foi cadastrada sob o número MG 004446 no
CNSA Cadastro nacional de sítios arqueológicos do SGPA-IPHAN.
Foto 01 - Visão do
interior da gruta do Ballet
A Lapa do Ballet (UTM 7840270 599030) está localizada
no vale cárstico da gruta de Poções e se encontra situada na base de um dos
inúmeros maciços calcários que afloram na área. A aproximadamente 150 metros da
caverna encontramos o rio subterrâneo Palmeiras que corta o vale por debaixo
dos paredões com suas resurgências em alguns pontos.
O entorno da Lapa do Ballet é uma das áreas mais
bonitas e representativas em termos de relevo cárstico da região de Lagoa
Santa. Com seus imensos paredões, grutas e sumidouros, o vale cárstico de
poções possui várias cavernas (a começar pela maior delas, a gruta de poções
que deu nome à região) e sítios arqueológicos. Foi neste vale que o autor na
década de 1980, ainda como espeleólogo do NAE (Núcleo de Atividades
Espeleológicas de Minas Gerais), descobriu e batizou o “sítio arqueológico do
Porco Preto”, onde encontrou pinturas e um belo painel de gravações rupestres
em um bloco abatido. Apesar da região já ter sido bastante visitada, não se
descarta a possibilidade de descoberta de novos sítios e cavernas no local.
A importância espeleológica e arqueológica do vale de
poções foi reconhecida pelo Governo do Estado que através do IEPHA/MG fez em
1989 o tombamento do “Conjunto arqueológico e paisagístico de Poções” ,
conforme diretrizes do decreto 26.193 de 24/09/86. Em 1990 a área passou a
fazer parte da Área de proteção ambiental (APA) Carste de Lagoa Santa, unidade
de conservação sob a responsabilidade do IBAMA.
Atualmente, a Lapa do Ballet se encontra inserida nos
terrenos de uma fábrica de cimento (Lafarge). Por exigência dos órgãos
ambientais a mineradora foi obrigada a criar dentro da sua propriedade uma RPPN
(Reserva particular do patrimônio natural Fazenda Bom Jardim) e investir em
projetos ambientais, entre eles a conservação da referida gruta.
Em 1980, época em que o autor trabalhou na prospecção
do vale de poções, a vegetação em torno da caverna era constituída de uma mata
rala e as vertentes e o fundo do vale eram utilizados para a plantação de
milho.
Nos últimos anos, com a área protegida, a mata está
voltando a ocupar gradualmente as
encostas.
Foto 02 – Foto de
1980, mostrando o maciço calcário onde se localiza a Lapa do Ballet, com campos
de aradura e plantio a sua frente. Hoje é impossível ter a mesma visão pois os
campos já estão tomados pela mata que voltou a crescer.
Foto 03 – Detalhe da
entrada da Lapa do Ballet em 1980
A caverna possui uma
única entrada com pouco menos de 10 metros de abertura e basicamente é formada
por um grande salão com uns 40 metros de profundidade.
O solo é constituído
por um sedimento argiloso e em vários pontos parece já ter sido revolvido por
escavações.
O visitante que se
adentra na Lapa tem sua atenção despertada primeiramente pelo teto bastante
enegrecido, em contraste com a cor branca das estalactites e demais
escorrimentos de calcita.
A cor negra do teto é
devido à presença de uma camada de fuligem bastante antiga, cuja origem possivelmente
se deve às fogueiras que eram constantemente acesas no interior da caverna em
um passado remoto.
A antiguidade da
camada de fuligem é percebida facilmente em razão do tamanho das concreções de
calcita que cresceram sobre o depósito negro deixado pela fumaça das fogueiras
antigas.
A velocidade de
precipitação do carbonato de cálcio na forma de espeleotemas (estalactites e
demais concreções de calcita) no teto de uma caverna é bastante variável,
dependendo da região e do clima. Mas tal precipitação ocorre geralmente de
forma muito lenta. Na formação das estalactites, a precipitação do carbonato de
cálcio no teto da caverna se inicia com o aparecimento de um delicado círculo
de calcita que cresce gradualmente na forma de um frágil canudo. Quando o canal
central da estalactite é entupido por areia ou fungos, a água que escorria por
este canal é forçada a escorrer pelo exterior do tubo, aumentando assim cada
vez mais a espessura da estalactite que começa a ter a aparência de um cone
invertido. O crescimento desses depósitos minerais é muito lento, da ordem de
5mm a 25mm por século. Na gruta do Ballet temos estalactites extremamente
brancas com vários centímetros de comprimento depositadas sobre o teto
enegrecido pela fuligem antiga, o que possivelmente comprova a presença da
fuligem ali há milhares de anos.
Foto 04 – Visão geral do teto enegrecido, em
contraste com a estalactite branca
Foto 05 - Detalhe
do teto negro da caverna com uma linha de estalactites de vários centímetros de
comprimento depositadas sobre a camada de fuligem
Em um corte estratigráfico do solo da caverna é
possível observar um antigo horizonte lenticular de cinzas e carvões,
confirmando a presença das antigas fogueiras. Além da gruta do Ballet, uma
outra caverna próxima apresenta também o mesmo tipo de vestígio.
Foto 06 - antigo horizonte lenticular de cinzas e
carvões
Além do teto negro da
caverna, os painéis de pinturas rupestres situados na parede lateral logo chamam a atenção dos visitantes.
Em 2002 esses painéis foram restaurados pela
pesquisadora Helena David e sua equipe. O resultado do trabalho foi apresentado
no ano seguinte no XXVII Congresso Brasileiro de Espeleologia realizado na
cidade de Januária/MG. O trabalho delicado de restauro conseguiu despoluir as
paredes da caverna, retirando as pichações até então existentes. O suporte
rochoso onde se encontra as pinturas rupestres estava bastante degradado pela
ação de visitantes vândalos que ali deixaram suas marcas com giz, carvão, barro
e incisões. Esse esforço de conservação foi um marco na história da preservação
da arte rupestre em cavernas, pois foi a primeira vez que um trabalho dessa
envergadura foi realizado em Minas Gerais. Outros projetos de restauro estavam
sendo cogitados, entre eles o painel rupestre da gruta do sumidouro. Porém, com
a morte inesperada da Dra. Helena David, os projetos não se realizaram.
As sinalações
rupestres da Lapa do Ballet fazem parte, sem sombra de dúvida, de um dos
vestígios de ocupação humana mais interessantes encontrados na área cárstica de
Lagoa Santa.
Toda a arte rupestre
do abrigo está localizada na parede à direita da entrada da gruta e decoram a
rocha em nichos diferenciados. Percebe-se claramente dois momentos distintos de
registros pictóricos.
No nicho mais alto,
encontramos signos referentes a alguns cervídeos e quadrúpedes que foram pintados
com pigmentos de cor amarelo e vermelho. Parecem ser os desenhos mais antigos e
estão relacionados à Tradição Planalto (Essa tradição de pinturas rupestres se
caracteriza por um predomínio de desenhos zoomorfos, em sua maioria cervídeos e
outros quadrúpedes pintados monocromicamente, geralmente nas cores vermelho ou
amarelo).
Foto 07: Painel 1 – Quadrúpedes no alto da parede,
Tradição planalto
Nesta mesma parede,
localizada à direita da entrada da caverna, encontramos os outros painéis
situados em nichos inferiores (na parte média da parede) e que apresentam rara
beleza, mostrando uma unidade estilística diversa dos zoomorfos da tradição
planalto acima mencionada.
Estas sinalações são
constituídas em sua maioria por desenhos antropomorfos, pintados na cor preta, com
os corpos afinados (filiforme), mostrando a genitália masculina ou feminina bem
evidenciada, cabeça com a boca aberta e mãos com três dedos (figuras
tridáctilas).
Todas as figuras
antropomórficas estão direcionadas para a entrada da caverna e foram postas em
filas, com todos os indivíduos olhando para fora do abrigo. Nas filas
superiores encontramos as figuras de mulheres grávidas ou parindo. Parecem
possuir algum adorno ou cesta sobre a cabeça, além de estarem com pequenas
figuras antropomórficas também sobre a cabeça, sugerindo serem crianças.
Na fila inferior,
aparece um grupo de “homens-fio” (figuras filiformes), com bocas abertas e todos
com os falos eretos, sugerindo uma dança ritualística. As bocas abertas podem
ser a expressão de um momento de êxtase, com o pronunciamento de gritos ou
cânticos.
Na frente das filas de
mulheres e homens encontramos um bloco rochoso com o desenho de um único
antropomorfo parecendo ser uma cena de parto.
Esses signos de homens
e mulheres em fila sugerindo uma dança acabaram por dar o nome à caverna de
“Lapa do Ballet”.
Foto 08: Painel 2A -
Fila superior, com antropomorfos femininos
Foto 09: Painel 2B – Filas mediana e inferior, com antropomorfos
femininos e masculinos
Foto 10: Painel 2C - bloco rochoso com o desenho de
um único antropomorfo evidenciando uma possível cena de parto
Sob o painel do Ballet
existem indícios de outras pinturas na cor amarela e vermelha que parecem que
foram retiradas por raspagem para que o painel do ballet fosse pintado por
cima.
Foto 11
Foto 12
Fotos 11 e 12, mostrando a posição dos painéis
rupestres na entrada da caverna.
Na década de 1980, o
traçado peculiar dos signos da Lapa do Ballet fez com que os arqueólogos
reconhecessem a especificidade do estilo, denominando-o de “fácies ballet”,
acreditando tratar-se de uma influência de outra tradição (tradição nordeste)
que teria chegado mais tardiamente em território mineiro.
A tradição nordeste
possui datações confirmadas em torno dos seis mil anos de idade e é caracterizada
por formas antropomorfas em movimento, carregando adereços e representando
cenas cotidianas de caça, dança, práticas sexuais, lutas e curiosos rituais em
torno de uma árvore, que se acredita ter poderes enteogênicos (alucinógenos).
O estilo de
antropoformos presentes na gruta do Ballet (com corpo filiforme, mão
tridáctila, boca aberta e falo evidenciado) pode ser encontrado pintado em
outras cavernas de Minas Gerais, tais como os abrigos do Rei do Mato (Sete Lagoas),
Capão das Éguas (Prudente de Morais), Maquiné (Cordisburgo), Campinho (Pedro
Leopoldo) e ainda registrados de forma picoteada, tal como encontrado nos
sítios da Lapa do Santo, Caieiras e Serrinha (todos no Município de
Matozinhos).
Acreditar que este
estilo de registro rupestre chegou tardiamente no território mineiro pode ser
uma conclusão precipitada e temerária, uma vez que existe uma data confirmada
para uma sinalação picoteada de um antropomorfo estilo Ballet (apelidado de
“taradinho”) com data entre 9.000 e 11.000 anos na Lapa do Santo.
Com relação à
conservação dos painéis rupestres da Lapa do Ballet, em que pese o fato do belo
trabalho de restauração realizado pela Dra. Helena David em 2002, o registro
pictórico corre sério risco de dano em face da fragmentação do suporte rochoso
onde os desenhos foram pintados.
O receio agora não é
mais a pixação dos vândalos - uma vez que a área se encontra cercada e
protegida - mas sim o alargamento das fissuras existentes nas paredes onde os
signos foram pintados. Tais fissuras vêm aumentando, ainda que de forma lenta,
a cada ano.
O autor vem
fotografando os painéis rupestres desde a década de 80 e passados mais de
trinta anos é possível observar nas fotos abaixo o alargamento das trincas no
suporte rochoso.
Essas pinturas estão
ali presentes há milhares de anos e nas últimas décadas o processo de
deterioração da rocha se acelerou muito. Seria interessante um trabalho a ser
desenvolvido para se chegar a uma conclusão a respeito. Poderia ter relação com
a poluição? Muito CO2 na atmosfera aumentando a acidez da água de chuva
infiltrada? Existiria uma modificação climática localizada por causa da
presença das fábricas cimenteiras? Essas e outras questões precisam ser
respondidas com urgência.
Foto 13
Foto 14
Fotos 13 e 14 – Comparação da
degradação da rocha nos últimos 30 anos
Com relação à ocupação da Lapa do Ballet, parece que o
abrigo não foi utilizado como moradia, o que reforça a idéia de uma ocupação
ritualística em determinadas épocas, em face do horizonte de cinza e carvão
existente na estratigrafia do solo e a presença de fuligem antiga no teto.
O Abrigo foi sondado em 1956 por Hurt e Blasi e depois
no início da década de 1970 pela Missão Franco Brasileira. As sondagens
realizadas apresentaram poucos vestígios de material ósseo, lítico e cerâmico.
Na década de 1980, mais material cerâmico e um pote
foram achados fora da caverna, mas não se tem idéia se os mesmos fazem parte do
contexto relacionado às sinalações rupestres.
Os painéis de pinturas rupestres, por sua vez, foram
copiados em 1960 pelo arqueólogo amador Josaphat Penna. Posteriormente, na
década de 1970, novos calques (cópias em escala 1:1) foram feitos pela Missão
Franco Brasileira e pelo CETEC.
O material das sondagens realizadas em 1956 e 1973 se
encontram no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Os calques das pinturas
rupestres confeccionados pelo CETEC estão depositados no Museu de História Natural
da UFMG
Mais sobre a Lapa do Ballet pode ser encontrado na
bibliografia: Hurt et Blasi – 1969, Laming-Emperaire et alii 1975, Prous &
Paula 1980/81, Prous – 1986, Prous – 1992, Prous – 1994 e Prous – 1997.