Vestígios de um passado distante

Vestígios de um passado distante

terça-feira, 19 de março de 2013

Lapa da Bonina


A casa dos veados galheiros



A região em torno da pequena cidade de Monjolos, distante cerca de 250 quilômetros ao norte de Belo Horizonte, apresenta um conjunto de cavernas e abrigos de grande interesse espeleo-arqueológico. Nos seus afloramentos calcários, que a leste quase tocam as montanhas e chapadões de quartzito da Serra do Espinhaço, encontramos várias lapas outrora ocupadas pelos bandos de caçadores-coletores que aqui viveram há milhares de anos.

Diante da arte rupestre ali presente, um dos abrigos mais marcantes neste cenário é sem dúvida alguma a Lapa da Bonina. O abrigo fica situado na região conhecida como “Salobro”, na Fazenda Velha, Município de Monjolos (Coordenas UTM 592899E – 7981707N).

A lapa encontra-se localizada na encosta de um rochedo calcário que se estende por mais de um quilômetro no sentido norte-sul. O maciço é coberto por vegetação decídua, sendo que o abrigo, situado na base do rochedo, está voltado para o leste, se abrindo para uma extensa área de campo e planície.

O abrigo apresenta um desenvolvimento linear, paralelo ao rochedo, alcançando aproximadamente sete metros de largura, de uma ponta a outra e uma profundidade máxima de cincos metros.

                         Rochedo e abrigo, vistos do satélite

Arte rupestre: Todos os painéis rupestres da Lapa da Bonina são constituídos por gravações confeccionadas em baixo relevo através da técnica de picoteamento da rocha suporte. Neste abrigo não encontramos pinturas. A lapa apresenta dois conjuntos distintos de petroglifos: No suporte horizontal, constituído por um grande bloco abatido no solo do abrigo, encontramos um conjunto de figuras geométricas semelhantes àquelas gravuras da Tradição do complexo Montalvânia. No suporte vertical, na principal parede da lapa, há um conjunto de zoomorfos e antropomorfos característicos da Tradição Planalto.


Visão da parte interna do abrigo, mostrando o bloco abatido com gravações da Tradição Montalvânia (1) e a parede principal com gravações da Tradição Planalto (2)


Tradições rupestres bem distintas:  Cotejando os desenhos gravados sobre o bloco abatido com aqueles existentes na parede do abrigo percebemos claramente que se tratam de temas distintos, realizados possivelmente em diferentes momentos.


De fato, enquanto no suporte horizontal percebemos desenhos de círculos e semi-círculos distribuídos em meio a linhas serpenteadas, na parede do abrigo não há gravações geométricas. As figuras ali encontradas são na sua grande maioria zoomorfos (basicamente cervídeos).

O estilo das figuras geométricas gravadas no bloco abatido, em princípio, é característico da Tradição denominada “complexo Montalvânia” cujos registros são encontrados principalmente no norte de Minas Gerais e sudoeste da Bahia. Entretanto, não nos espanta o fato dessa Tradição estar presente neste abrigo, um pouco mais ao sul, pois até mesmo em regiões ainda mais meridionais é possível observar traços dessa tradição. Como exemplo, basta mencionar que na Grande Região metropolitana de Belo Horizonte, próximo a cidade de Mocambeiro, encontramos no Sítio arqueológico “Abrigo do porco preto” traços semelhantes realizados com o mesmo “modus operandi”, ou seja, gravações com o mesmo tema (desenhos de círculos, anéis e redes) registradas da mesma forma (técnica de picoteamento) no mesmo tipo de suporte (bloco abatido na superfície do abrigo). No abrigo da lapa da Pictografia (ou Lapa do Homem) situado há poucos quilômetros da lapa da Bonina encontramos exatamente o mesmo quadro de registro rupestre. É interessante observar que esses blocos abatidos que serviram de suporte para as gravações apresentam na maioria dos casos superfícies polidas e lustrosas, o que indicaria talvez um possível uso ritualístico na área plana do bloco.

Parte das gravações feitas em bloco abatido na Lapa da Bonina

Gravações (tradição complexo Montalvânia) realizadas em blocos abatidos. A) Abrigo do Porco Preto, B) Lapa do homem (ou pictografia) C) Lapa da Bonina


A Tradição planalto e o bando de veados galheiros: Apesar da existência das gravações geométricas no bloco abatido, certamente o painel que chama mais a atenção do observador é aquele situado na parede do abrigo com dezenas de figuras de veados galheiros.

Em uma contagem rápida identificamos pelo menos 52 cervídeos registrados nas gravações. A maioria dos veados galheiros foi desenhada com uma visão lateral, onde é possível observar todo o corpo do animal, com sua cabeça, chifres e membros, alguns indicando inclusive movimento. Pouco mais de uma dúzia dos desenhos apresenta uma inédita perspectiva frontal dos cervídeos, com o registro apenas da cabeça vista de frente com seus chifres.  Nesse registro da perspectiva frontal dos animais, uma série específica, realizada de forma linear e com uns oito animais gravados apresenta a cabeça dos cervídeos como um pequeno círculo, dando maior ênfase para o tamanho dos chifres.

Essa visão frontal dos animais, onde o corpo não aparece, existindo apenas o desenho das cabeças com os chifres, foi descrita por alguns pesquisadores como “figuras ovais com apêndices ondulados” levando a uma interpretação equivocada de que tais figuras seriam também da tradição Montalvânia, como aquelas encontradas no bloco abatido no solo do abrigo. Na verdade, uma observação mais detalhada de todo o painel nos dá indícios de que as referidas figuras são realmente animais vistos por uma outra perspectiva muito pouco utilizada nesse tipo de registro, a perspectiva frontal.

O estilo de cada animal desenhado e a sobreposição dos picoteamentos sugere que as figuras foram registradas em momentos distintos e por mãos também diferentes. Interessante observar também que mesmo não tendo sido as figuras gravadas em um mesmo momento, os autores dos registros fizeram com que as gravações deste painel seguissem uma seqüência lógica. De fato, nesse painel todos os animais foram registrados na mesma direção, com os corpos orientados para o lado de fora do abrigo. A impressão que se tem é a de um bando de veados correndo no mesmo sentido, com um outro grupo atrás (as cabeças em perspectiva frontal) observando o movimento. Um dos animais que segue a frente do bando apresenta uma enorme galhada, com um tamanho totalmente desproporcional, sugerindo talvez ser o líder do bando.

Todos esses fatores ressaltam, por si só, a importância desse painel rupestre de gravações.
  

Montagem de fotos mostrando uma parte do painel dos veados. Note-se que todos os animais vistos lateralmente estão orientados no mesmo sentido.

  
         

Parte do painel, apresentando as duas perspectivas de registro utilizadas. A visão lateral (marcada de branco) e ao fundo a visão frontal (marcada de azul) mostrando apenas as cabeças com os chifres. A seta amarela indica o sentido de movimento dos animais.


                                   
Visão parcial do painel de veados galheiros. Em destaque, note-se o tamanho desproporcional dos chifres do primeiro animal que segue a frente do bando.



Detalhe do picoteamento da gravação. Na figura, um veado galheiro correndo e logo abaixo duas pequenas cabeças com chifres


Uma outra parte do painel com o crescimento de raízes sobre as gravações.

Esses animais representados podem nos dar uma idéia de como era a vegetação no passado distante nessa área. Os veados galheiros (família cervidae, ordem artiodactyla) viviam e ainda vivem em áreas abertas com árvores esparsas, além de florestas decíduas e terras baixas. Evitavam áreas de florestas densas, preferindo suas bordas. Ocupavam áreas de uso bem definidas, pastando a procura de alimentos.

Registro das imagens. Na fotografia das gravações rupestres ou de quaisquer outras incisões, a luz do flash da câmara fotográfica aplicada de forma direta causa uma iluminação chapada que não permite ver em detalhes os desenhos pictográficos. Algumas pessoas pouco sensatas acabam por passar giz ou cal dentro das incisões em baixo relevo a fim de destacá-las para a fotografia. Este tipo de intervenção é absurda e criminosa, pois prejudica as gravações bem como o suporte rochoso onde as mesmas estão inseridas.

A melhor forma de registrar gravações em baixo relevo é com a utilização de uma luz rasa e lateral. A luz lateral incidindo de forma rasante causa um efeito de tridimensionalidade nas imagens o que permite ver com maior nitidez os detalhes do desenho gravado.


Aplicação de uma iluminação lateral, quase paralela ao suporte rochoso



Conjunto de chifres, Efeito da luz lateral: maior destaque na imagem


                        A Lapa da Bonina já foi mencionada por Guimarães et al. (2011), Teixeira Silva et. al. (2005) e Oliveira et al (2007) no 31º. Congresso brasileiro de espeleologia realizado em Ponta Grossa/PR em 2011 e no 29º. Congresso realizado em Ouro preto em 2007. Todavia, os trabalhos apresentados tiveram como foco a espeleologia na área cárstica de Monjolos, não abordando com maior profundidade o lado arqueológico do abrigo.

                             O sedimento quer cobre o piso do abrigo parece estar ainda intacto em boa parte. Não há registros de escavação no local. Em baixo de uma “pingueira” de água, que lavou uma pequena área do solo, é possível observar restos de indústria lítica (lascas de quartzo).


O autor analisando uma “pingueira” onde foram encontrados restos de indústria lítica (lascas de quartzo)


Conservação do abrigo: apesar da importância dos registros rupestres nesse abrigo, a Lapa da Bonina, a exemplo de tantas outras, apresenta em suas paredes vários traços de pichação provenientes da incisão de nomes, datas e frases dos visitantes que ali deixaram suas tristes marcas. Infelizmente, os moradores da região, incluindo aí os proprietários das terras e trabalhadores rurais da localidade, ainda não se conscientizaram da existência desse tesouro do qual deveriam ser os primeiros guardiões.