Vestígios de um passado distante

Vestígios de um passado distante

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Gruta do Ballet, a celebração da fertilidade através de antigos rituais



Gruta do Ballet
 A celebração da fertilidade através de antigos rituais


Imagine um lugar sagrado... Não vale pensar em basílicas ou catedrais construídas com todo o luxo dispendioso das sociedades modernas. Projete em sua mente um templo forjado pela própria natureza há milhares de anos. Uma caverna, por exemplo. Situada no alto de uma vertente e com um grande salão à meia-luz. Agora, feche seus olhos e volte no tempo... Visualize um grupo desnudo de homens e mulheres em uma noite clara de lua cheia entrando nessa gruta - o útero da grande mãe - para celebrar rituais primitivos de fertilidade, em torno de enormes fogueiras...



Este é um cenário que poderia muito bem ter ocorrido em uma noite distante, perdida no tempo, em uma caverna conhecida na atualidade como Lapa do Chapéu ou Gruta do Ballet, situada no Distrito de Mocambeiro, Município de Matozinhos/MG, a aproximadamente 40 km ao norte da Capital Mineira.


A gruta foi cadastrada sob o número MG 004446 no CNSA Cadastro nacional de sítios arqueológicos do SGPA-IPHAN.


Foto 01 - Visão do interior da gruta do Ballet



A Lapa do Ballet (UTM 7840270 599030) está localizada no vale cárstico da gruta de Poções e se encontra situada na base de um dos inúmeros maciços calcários que afloram na área. A aproximadamente 150 metros da caverna encontramos o rio subterrâneo Palmeiras que corta o vale por debaixo dos paredões com suas resurgências em alguns pontos.

O entorno da Lapa do Ballet é uma das áreas mais bonitas e representativas em termos de relevo cárstico da região de Lagoa Santa. Com seus imensos paredões, grutas e sumidouros, o vale cárstico de poções possui várias cavernas (a começar pela maior delas, a gruta de poções que deu nome à região) e sítios arqueológicos. Foi neste vale que o autor na década de 1980, ainda como espeleólogo do NAE (Núcleo de Atividades Espeleológicas de Minas Gerais), descobriu e batizou o “sítio arqueológico do Porco Preto”, onde encontrou pinturas e um belo painel de gravações rupestres em um bloco abatido. Apesar da região já ter sido bastante visitada, não se descarta a possibilidade de descoberta de novos sítios e cavernas no local.

A importância espeleológica e arqueológica do vale de poções foi reconhecida pelo Governo do Estado que através do IEPHA/MG fez em 1989 o tombamento do “Conjunto arqueológico e paisagístico de Poções” , conforme diretrizes do decreto 26.193 de 24/09/86. Em 1990 a área passou a fazer parte da Área de proteção ambiental (APA) Carste de Lagoa Santa, unidade de conservação sob a responsabilidade do IBAMA.

Atualmente, a Lapa do Ballet se encontra inserida nos terrenos de uma fábrica de cimento (Lafarge). Por exigência dos órgãos ambientais a mineradora foi obrigada a criar dentro da sua propriedade uma RPPN (Reserva particular do patrimônio natural Fazenda Bom Jardim) e investir em projetos ambientais, entre eles a conservação da referida gruta.

Em 1980, época em que o autor trabalhou na prospecção do vale de poções, a vegetação em torno da caverna era constituída de uma mata rala e as vertentes e o fundo do vale eram utilizados para a plantação de milho.

Nos últimos anos, com a área protegida, a mata está voltando a ocupar  gradualmente as encostas.
 

Foto 02 – Foto de 1980, mostrando o maciço calcário onde se localiza a Lapa do Ballet, com campos de aradura e plantio a sua frente. Hoje é impossível ter a mesma visão pois os campos já estão tomados pela mata que voltou a crescer.
 

Foto 03 – Detalhe da entrada da Lapa do Ballet em 1980


A caverna possui uma única entrada com pouco menos de 10 metros de abertura e basicamente é formada por um grande salão com uns 40 metros de profundidade.
 O solo é constituído por um sedimento argiloso e em vários pontos parece já ter sido revolvido por escavações.

O visitante que se adentra na Lapa tem sua atenção despertada primeiramente pelo teto bastante enegrecido, em contraste com a cor branca das estalactites e demais escorrimentos de calcita.

A cor negra do teto é devido à presença de uma camada de fuligem bastante antiga, cuja origem possivelmente se deve às fogueiras que eram constantemente acesas no interior da caverna em um passado remoto.

A antiguidade da camada de fuligem é percebida facilmente em razão do tamanho das concreções de calcita que cresceram sobre o depósito negro deixado pela fumaça das fogueiras antigas.

A velocidade de precipitação do carbonato de cálcio na forma de espeleotemas (estalactites e demais concreções de calcita) no teto de uma caverna é bastante variável, dependendo da região e do clima. Mas tal precipitação ocorre geralmente de forma muito lenta. Na formação das estalactites, a precipitação do carbonato de cálcio no teto da caverna se inicia com o aparecimento de um delicado círculo de calcita que cresce gradualmente na forma de um frágil canudo. Quando o canal central da estalactite é entupido por areia ou fungos, a água que escorria por este canal é forçada a escorrer pelo exterior do tubo, aumentando assim cada vez mais a espessura da estalactite que começa a ter a aparência de um cone invertido. O crescimento desses depósitos minerais é muito lento, da ordem de 5mm a 25mm por século. Na gruta do Ballet temos estalactites extremamente brancas com vários centímetros de comprimento depositadas sobre o teto enegrecido pela fuligem antiga, o que possivelmente comprova a presença da fuligem ali há milhares de anos.
Foto 04 – Visão geral do teto enegrecido, em contraste com a estalactite branca


Foto 05 -  Detalhe do teto negro da caverna com uma linha de estalactites de vários centímetros de comprimento depositadas sobre a camada de fuligem


                      Em um corte estratigráfico do solo da caverna é possível observar um antigo horizonte lenticular de cinzas e carvões, confirmando a presença das antigas fogueiras. Além da gruta do Ballet, uma outra caverna próxima apresenta também o mesmo tipo de vestígio.

Foto 06 - antigo horizonte lenticular de cinzas e carvões
 


Além do teto negro da caverna, os painéis de pinturas rupestres situados na parede lateral  logo chamam a atenção dos visitantes.

Em 2002 esses painéis foram restaurados pela pesquisadora Helena David e sua equipe. O resultado do trabalho foi apresentado no ano seguinte no XXVII Congresso Brasileiro de Espeleologia realizado na cidade de Januária/MG. O trabalho delicado de restauro conseguiu despoluir as paredes da caverna, retirando as pichações até então existentes. O suporte rochoso onde se encontra as pinturas rupestres estava bastante degradado pela ação de visitantes vândalos que ali deixaram suas marcas com giz, carvão, barro e incisões. Esse esforço de conservação foi um marco na história da preservação da arte rupestre em cavernas, pois foi a primeira vez que um trabalho dessa envergadura foi realizado em Minas Gerais. Outros projetos de restauro estavam sendo cogitados, entre eles o painel rupestre da gruta do sumidouro. Porém, com a morte inesperada da Dra. Helena David, os projetos não se realizaram.

As sinalações rupestres da Lapa do Ballet fazem parte, sem sombra de dúvida, de um dos vestígios de ocupação humana mais interessantes encontrados na área cárstica de Lagoa Santa.

Toda a arte rupestre do abrigo está localizada na parede à direita da entrada da gruta e decoram a rocha em nichos diferenciados. Percebe-se claramente dois momentos distintos de registros pictóricos.


No nicho mais alto, encontramos signos referentes a alguns cervídeos e quadrúpedes que foram pintados com pigmentos de cor amarelo e vermelho. Parecem ser os desenhos mais antigos e estão relacionados à Tradição Planalto (Essa tradição de pinturas rupestres se caracteriza por um predomínio de desenhos zoomorfos, em sua maioria cervídeos e outros quadrúpedes pintados monocromicamente, geralmente nas cores vermelho ou amarelo).

Foto 07: Painel 1 – Quadrúpedes no alto da parede, Tradição planalto

Nesta mesma parede, localizada à direita da entrada da caverna, encontramos os outros painéis situados em nichos inferiores (na parte média da parede) e que apresentam rara beleza, mostrando uma unidade estilística diversa dos zoomorfos da tradição planalto acima mencionada.

Estas sinalações são constituídas em sua maioria por desenhos antropomorfos, pintados na cor preta, com os corpos afinados (filiforme), mostrando a genitália masculina ou feminina bem evidenciada, cabeça com a boca aberta e mãos com três dedos (figuras tridáctilas).

Todas as figuras antropomórficas estão direcionadas para a entrada da caverna e foram postas em filas, com todos os indivíduos olhando para fora do abrigo. Nas filas superiores encontramos as figuras de mulheres grávidas ou parindo. Parecem possuir algum adorno ou cesta sobre a cabeça, além de estarem com pequenas figuras antropomórficas também sobre a cabeça, sugerindo serem crianças.

Na fila inferior, aparece um grupo de “homens-fio” (figuras filiformes), com bocas abertas e todos com os falos eretos, sugerindo uma dança ritualística. As bocas abertas podem ser a expressão de um momento de êxtase, com o pronunciamento de gritos ou cânticos.

Na frente das filas de mulheres e homens encontramos um bloco rochoso com o desenho de um único antropomorfo parecendo ser uma cena de parto.

Esses signos de homens e mulheres em fila sugerindo uma dança acabaram por dar o nome à caverna de “Lapa do Ballet”.



Foto 08: Painel 2A -  Fila superior, com antropomorfos femininos

Foto 09: Painel 2B –  Filas mediana e inferior, com antropomorfos femininos e masculinos
 

Foto 10: Painel 2C - bloco rochoso com o desenho de um único antropomorfo evidenciando uma possível cena de parto


Sob o painel do Ballet existem indícios de outras pinturas na cor amarela e vermelha que parecem que foram retiradas por raspagem para que o painel do ballet fosse pintado por cima.



Foto 11



 Foto 12

Fotos 11 e 12, mostrando a posição dos painéis rupestres na entrada da caverna.


Na década de 1980, o traçado peculiar dos signos da Lapa do Ballet fez com que os arqueólogos reconhecessem a especificidade do estilo, denominando-o de “fácies ballet”, acreditando tratar-se de uma influência de outra tradição (tradição nordeste) que teria chegado mais tardiamente em território mineiro.

A tradição nordeste possui datações confirmadas em torno dos seis mil anos de idade e é caracterizada por formas antropomorfas em movimento, carregando adereços e representando cenas cotidianas de caça, dança, práticas sexuais, lutas e curiosos rituais em torno de uma árvore, que se acredita ter poderes enteogênicos (alucinógenos).

O estilo de antropoformos presentes na gruta do Ballet (com corpo filiforme, mão tridáctila, boca aberta e falo evidenciado) pode ser encontrado pintado em outras cavernas de Minas Gerais, tais como os abrigos do Rei do Mato (Sete Lagoas), Capão das Éguas (Prudente de Morais), Maquiné (Cordisburgo), Campinho (Pedro Leopoldo) e ainda registrados de forma picoteada, tal como encontrado nos sítios da Lapa do Santo, Caieiras e Serrinha (todos no Município de Matozinhos).

Acreditar que este estilo de registro rupestre chegou tardiamente no território mineiro pode ser uma conclusão precipitada e temerária, uma vez que existe uma data confirmada para uma sinalação picoteada de um antropomorfo estilo Ballet (apelidado de “taradinho”) com data entre 9.000 e 11.000 anos na Lapa do Santo.

Com relação à conservação dos painéis rupestres da Lapa do Ballet, em que pese o fato do belo trabalho de restauração realizado pela Dra. Helena David em 2002, o registro pictórico corre sério risco de dano em face da fragmentação do suporte rochoso onde os desenhos foram pintados.

O receio agora não é mais a pixação dos vândalos - uma vez que a área se encontra cercada e protegida - mas sim o alargamento das fissuras existentes nas paredes onde os signos foram pintados. Tais fissuras vêm aumentando, ainda que de forma lenta, a cada ano. 


O autor vem fotografando os painéis rupestres desde a década de 80 e passados mais de trinta anos é possível observar nas fotos abaixo o alargamento das trincas no suporte rochoso.


Essas pinturas estão ali presentes há milhares de anos e nas últimas décadas o processo de deterioração da rocha se acelerou muito. Seria interessante um trabalho a ser desenvolvido para se chegar a uma conclusão a respeito. Poderia ter relação com a poluição? Muito CO2 na atmosfera aumentando a acidez da água de chuva infiltrada? Existiria uma modificação climática localizada por causa da presença das fábricas cimenteiras? Essas e outras questões precisam ser respondidas com urgência.
 
                                                                         Foto 13

                                                                            Foto 14
 Fotos 13 e 14 – Comparação da degradação da rocha nos últimos 30 anos




Com relação à ocupação da Lapa do Ballet, parece que o abrigo não foi utilizado como moradia, o que reforça a idéia de uma ocupação ritualística em determinadas épocas, em face do horizonte de cinza e carvão existente na estratigrafia do solo e a presença de fuligem antiga no teto.

O Abrigo foi sondado em 1956 por Hurt e Blasi e depois no início da década de 1970 pela Missão Franco Brasileira. As sondagens realizadas apresentaram poucos vestígios de material ósseo, lítico e cerâmico.
Na década de 1980, mais material cerâmico e um pote foram achados fora da caverna, mas não se tem idéia se os mesmos fazem parte do contexto relacionado às sinalações rupestres.

Os painéis de pinturas rupestres, por sua vez, foram copiados em 1960 pelo arqueólogo amador Josaphat Penna. Posteriormente, na década de 1970, novos calques (cópias em escala 1:1) foram feitos pela Missão Franco Brasileira e pelo CETEC.

O material das sondagens realizadas em 1956 e 1973 se encontram no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Os calques das pinturas rupestres confeccionados pelo CETEC estão depositados no Museu de História Natural da UFMG

Mais sobre a Lapa do Ballet pode ser encontrado na bibliografia: Hurt et Blasi – 1969, Laming-Emperaire et alii 1975, Prous & Paula 1980/81, Prous – 1986, Prous – 1992, Prous – 1994 e Prous – 1997.





 







 

 


terça-feira, 19 de março de 2013

Lapa da Bonina


A casa dos veados galheiros



A região em torno da pequena cidade de Monjolos, distante cerca de 250 quilômetros ao norte de Belo Horizonte, apresenta um conjunto de cavernas e abrigos de grande interesse espeleo-arqueológico. Nos seus afloramentos calcários, que a leste quase tocam as montanhas e chapadões de quartzito da Serra do Espinhaço, encontramos várias lapas outrora ocupadas pelos bandos de caçadores-coletores que aqui viveram há milhares de anos.

Diante da arte rupestre ali presente, um dos abrigos mais marcantes neste cenário é sem dúvida alguma a Lapa da Bonina. O abrigo fica situado na região conhecida como “Salobro”, na Fazenda Velha, Município de Monjolos (Coordenas UTM 592899E – 7981707N).

A lapa encontra-se localizada na encosta de um rochedo calcário que se estende por mais de um quilômetro no sentido norte-sul. O maciço é coberto por vegetação decídua, sendo que o abrigo, situado na base do rochedo, está voltado para o leste, se abrindo para uma extensa área de campo e planície.

O abrigo apresenta um desenvolvimento linear, paralelo ao rochedo, alcançando aproximadamente sete metros de largura, de uma ponta a outra e uma profundidade máxima de cincos metros.

                         Rochedo e abrigo, vistos do satélite

Arte rupestre: Todos os painéis rupestres da Lapa da Bonina são constituídos por gravações confeccionadas em baixo relevo através da técnica de picoteamento da rocha suporte. Neste abrigo não encontramos pinturas. A lapa apresenta dois conjuntos distintos de petroglifos: No suporte horizontal, constituído por um grande bloco abatido no solo do abrigo, encontramos um conjunto de figuras geométricas semelhantes àquelas gravuras da Tradição do complexo Montalvânia. No suporte vertical, na principal parede da lapa, há um conjunto de zoomorfos e antropomorfos característicos da Tradição Planalto.


Visão da parte interna do abrigo, mostrando o bloco abatido com gravações da Tradição Montalvânia (1) e a parede principal com gravações da Tradição Planalto (2)


Tradições rupestres bem distintas:  Cotejando os desenhos gravados sobre o bloco abatido com aqueles existentes na parede do abrigo percebemos claramente que se tratam de temas distintos, realizados possivelmente em diferentes momentos.


De fato, enquanto no suporte horizontal percebemos desenhos de círculos e semi-círculos distribuídos em meio a linhas serpenteadas, na parede do abrigo não há gravações geométricas. As figuras ali encontradas são na sua grande maioria zoomorfos (basicamente cervídeos).

O estilo das figuras geométricas gravadas no bloco abatido, em princípio, é característico da Tradição denominada “complexo Montalvânia” cujos registros são encontrados principalmente no norte de Minas Gerais e sudoeste da Bahia. Entretanto, não nos espanta o fato dessa Tradição estar presente neste abrigo, um pouco mais ao sul, pois até mesmo em regiões ainda mais meridionais é possível observar traços dessa tradição. Como exemplo, basta mencionar que na Grande Região metropolitana de Belo Horizonte, próximo a cidade de Mocambeiro, encontramos no Sítio arqueológico “Abrigo do porco preto” traços semelhantes realizados com o mesmo “modus operandi”, ou seja, gravações com o mesmo tema (desenhos de círculos, anéis e redes) registradas da mesma forma (técnica de picoteamento) no mesmo tipo de suporte (bloco abatido na superfície do abrigo). No abrigo da lapa da Pictografia (ou Lapa do Homem) situado há poucos quilômetros da lapa da Bonina encontramos exatamente o mesmo quadro de registro rupestre. É interessante observar que esses blocos abatidos que serviram de suporte para as gravações apresentam na maioria dos casos superfícies polidas e lustrosas, o que indicaria talvez um possível uso ritualístico na área plana do bloco.

Parte das gravações feitas em bloco abatido na Lapa da Bonina

Gravações (tradição complexo Montalvânia) realizadas em blocos abatidos. A) Abrigo do Porco Preto, B) Lapa do homem (ou pictografia) C) Lapa da Bonina


A Tradição planalto e o bando de veados galheiros: Apesar da existência das gravações geométricas no bloco abatido, certamente o painel que chama mais a atenção do observador é aquele situado na parede do abrigo com dezenas de figuras de veados galheiros.

Em uma contagem rápida identificamos pelo menos 52 cervídeos registrados nas gravações. A maioria dos veados galheiros foi desenhada com uma visão lateral, onde é possível observar todo o corpo do animal, com sua cabeça, chifres e membros, alguns indicando inclusive movimento. Pouco mais de uma dúzia dos desenhos apresenta uma inédita perspectiva frontal dos cervídeos, com o registro apenas da cabeça vista de frente com seus chifres.  Nesse registro da perspectiva frontal dos animais, uma série específica, realizada de forma linear e com uns oito animais gravados apresenta a cabeça dos cervídeos como um pequeno círculo, dando maior ênfase para o tamanho dos chifres.

Essa visão frontal dos animais, onde o corpo não aparece, existindo apenas o desenho das cabeças com os chifres, foi descrita por alguns pesquisadores como “figuras ovais com apêndices ondulados” levando a uma interpretação equivocada de que tais figuras seriam também da tradição Montalvânia, como aquelas encontradas no bloco abatido no solo do abrigo. Na verdade, uma observação mais detalhada de todo o painel nos dá indícios de que as referidas figuras são realmente animais vistos por uma outra perspectiva muito pouco utilizada nesse tipo de registro, a perspectiva frontal.

O estilo de cada animal desenhado e a sobreposição dos picoteamentos sugere que as figuras foram registradas em momentos distintos e por mãos também diferentes. Interessante observar também que mesmo não tendo sido as figuras gravadas em um mesmo momento, os autores dos registros fizeram com que as gravações deste painel seguissem uma seqüência lógica. De fato, nesse painel todos os animais foram registrados na mesma direção, com os corpos orientados para o lado de fora do abrigo. A impressão que se tem é a de um bando de veados correndo no mesmo sentido, com um outro grupo atrás (as cabeças em perspectiva frontal) observando o movimento. Um dos animais que segue a frente do bando apresenta uma enorme galhada, com um tamanho totalmente desproporcional, sugerindo talvez ser o líder do bando.

Todos esses fatores ressaltam, por si só, a importância desse painel rupestre de gravações.
  

Montagem de fotos mostrando uma parte do painel dos veados. Note-se que todos os animais vistos lateralmente estão orientados no mesmo sentido.

  
         

Parte do painel, apresentando as duas perspectivas de registro utilizadas. A visão lateral (marcada de branco) e ao fundo a visão frontal (marcada de azul) mostrando apenas as cabeças com os chifres. A seta amarela indica o sentido de movimento dos animais.


                                   
Visão parcial do painel de veados galheiros. Em destaque, note-se o tamanho desproporcional dos chifres do primeiro animal que segue a frente do bando.



Detalhe do picoteamento da gravação. Na figura, um veado galheiro correndo e logo abaixo duas pequenas cabeças com chifres


Uma outra parte do painel com o crescimento de raízes sobre as gravações.

Esses animais representados podem nos dar uma idéia de como era a vegetação no passado distante nessa área. Os veados galheiros (família cervidae, ordem artiodactyla) viviam e ainda vivem em áreas abertas com árvores esparsas, além de florestas decíduas e terras baixas. Evitavam áreas de florestas densas, preferindo suas bordas. Ocupavam áreas de uso bem definidas, pastando a procura de alimentos.

Registro das imagens. Na fotografia das gravações rupestres ou de quaisquer outras incisões, a luz do flash da câmara fotográfica aplicada de forma direta causa uma iluminação chapada que não permite ver em detalhes os desenhos pictográficos. Algumas pessoas pouco sensatas acabam por passar giz ou cal dentro das incisões em baixo relevo a fim de destacá-las para a fotografia. Este tipo de intervenção é absurda e criminosa, pois prejudica as gravações bem como o suporte rochoso onde as mesmas estão inseridas.

A melhor forma de registrar gravações em baixo relevo é com a utilização de uma luz rasa e lateral. A luz lateral incidindo de forma rasante causa um efeito de tridimensionalidade nas imagens o que permite ver com maior nitidez os detalhes do desenho gravado.


Aplicação de uma iluminação lateral, quase paralela ao suporte rochoso



Conjunto de chifres, Efeito da luz lateral: maior destaque na imagem


                        A Lapa da Bonina já foi mencionada por Guimarães et al. (2011), Teixeira Silva et. al. (2005) e Oliveira et al (2007) no 31º. Congresso brasileiro de espeleologia realizado em Ponta Grossa/PR em 2011 e no 29º. Congresso realizado em Ouro preto em 2007. Todavia, os trabalhos apresentados tiveram como foco a espeleologia na área cárstica de Monjolos, não abordando com maior profundidade o lado arqueológico do abrigo.

                             O sedimento quer cobre o piso do abrigo parece estar ainda intacto em boa parte. Não há registros de escavação no local. Em baixo de uma “pingueira” de água, que lavou uma pequena área do solo, é possível observar restos de indústria lítica (lascas de quartzo).


O autor analisando uma “pingueira” onde foram encontrados restos de indústria lítica (lascas de quartzo)


Conservação do abrigo: apesar da importância dos registros rupestres nesse abrigo, a Lapa da Bonina, a exemplo de tantas outras, apresenta em suas paredes vários traços de pichação provenientes da incisão de nomes, datas e frases dos visitantes que ali deixaram suas tristes marcas. Infelizmente, os moradores da região, incluindo aí os proprietários das terras e trabalhadores rurais da localidade, ainda não se conscientizaram da existência desse tesouro do qual deveriam ser os primeiros guardiões.